domingo, junho 30

LONGE



TARDE LLUVIOSA


"Y mi alma baila herida de virutas de fuego.
Quién llama? Qué silencio poblado de ecos?
Hora de la nostalgia, hora de la alegría, hora de la soledad,
hora miá entre todas!"
Pablo Neruda (vinte poemas de amor e , p.56).

O GATO QUE ANDAVA SOZINHO



Ouve e atenta e escuta; pois isto deu-se e aconteceu e sucedeu e foi, Ó Mais-que Tudo, quando os animais domésticos eram selvagens. O Cão era selvagem e o Cavalo era selvagem e a Vaca era selvagem e o Carneiro era selvagem e o Porco era selvagem – tão selvagem quanto se pode – e andavam nos Bosques Húmidos e Selvagens na companhia da sua selvagem solidão. Mas o mais selvagem de todos os animais selvagens era o Gato. Andava sozinho e para ele todos os lugares eram o mesmo.
É claro que o Homem também era selvagem. Era assustadoramente selvagem. Nem sequer começou a ficar um pouco domesticado até conhecer a Mulher, e ela lhe dizer que não gostava de viver á sua moda selvagem. Ela escolheu uma bonita Caverna seca, em vez de um monte de folhas húmidas, para nela se deitar; e espalhou areia limpa no chão; e acendeu um belo lume de lenha na parte de trás da caverna, e pendurou uma pele curtida de cavalo selvagem, com a cauda para baixo, atravessada na entrada da Caverna, e disse:
- Limpa os pés, querido, quando entrares, e agora vamos governar a casa.
Nessa noite, Mais-que-Tudo, comeram carneiro bravo assado nas pedras em brasa e condimentado com alho bravo e pimenta brava; e pato bravo recheado com arroz bravo e fenacho bravo; e ossos com tutano de bois bravos; e cerejas bravas e romãs bravas. Depois, Homem adormeceu em frente ao lume, mesmo feliz; mas a Mulher ficou em pé a pentear o cabelo. Pegou no osso do pernil do carneiro – o grande osso achatado da pá – e olhou para as suas maravilhosas marcas e deitou mais lenha no lume e fez uma Magia. Fez a primeira Magia Cantada do mundo.
Lá fora nos Bosques Húmidos e Selvagens todos os animais se juntaram num lugar donde podiam ver o clarão do lume a grande distância e perguntaram-se o que queria dizer.
Depois o Cavalo Selvagem bateu com a sua pata selvagem e disse:
- Ó meus Amigos e Ó meus Inimigos, porque é que o Homem e a Mulher fizeram aquele grande clarão naquela grande Caverna e que danos nos causará?
O Cão Selvagem levantou o seu nariz selvagem e cheirou o cheiro do carneiro assado e disse:
- Vou lá acima e olhar e ver e dizer; porque julgo que é bom. Gato, vem comigo.
- Nenni! – disse o Gato. – Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim. Não irei.
- Então não podemos voltar a ser amigos nunca mais – disse o Cão Selvagem, e trotou para a Caverna.
Mas, quando já se tinha afastado um pouco, o Gato disse de si para consigo:
“Todos os lugares são o mesmo para mim. Porque é que eu não hei-de ir lá ver e vir-me embora a meu bel-prazer?”
Assim, esgueirou-se atrás do Cão Selvagem, leve, muito levemente, e escondeu-se onde podia ouvir tudo.
Quando o Cão Selvagem chegou á entrada da Caverna levantou a pele de cavalo curtida com o nariz e cheirou o belo cheiro de carneiro assado e a Mulher, olhando para a pá de carneiro, ouviu-o e riu e disse:
- Aqui vem o primeiro. Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, o que queres?
O Cão Selvagem disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, o que é isto que cheira tão bem nos Bosques Selvagens?
Então a Mulher pegou num osso de carneiro assado e atirou-o ao Cão Selvagem e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, prova e experimenta.
O Cão Selvagem roeu o osso e era mais delicioso do que tudo o que já alguma vez provara e disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, dá-me outro.
A Mulher disse:
- Coisa Selvagem vinda dos bosques selvagens, ajuda o meu homem a caçar durante o dia a guarda esta Caverna á noite e dar-te-ei tantos ossos assados quantos precisares.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto. – Esta é uma mulher muito sensata, mas não é tão esperta quanto eu.
O Cão Selvagem arrastou-se para dentro da Caverna e pousou a cabeça no colo da Mulher e disse:
- Ó minha Amiga e Esposa do meu Amigo, ajudarei o teu homem a caçar durante o dia e á noite guardarei a tua Caverna.
- Ah! – disse o Gato ao ouvir isto. – Este é um Cão muito tonto.
E regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão. Mas nunca contou a ninguém.
Quando o Homem acordou, disse:
- O que está o Cão Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- Já não se chama Cão Selvagem, mas sim o Primeiro Amigo, porque será nosso amigo para todo o sempre. Leva-o contigo quando fores caçar.
Na noite seguinte a Mulher segou grandes braçadas verdes de erva fresca das várzeas e secou-a ao lume, de modo que cheirava a feno acabado de ceifar, e sentou-se á entrada da Caverna e fez um cabresto entrançado de couro de cavalo e olhou para o osso de pernil de carneiro. Fez a Segunda Magia Cantada no Mundo.
Lá fora nos Bosques Selvagens todos os animais se perguntavam o que tinha acontecido ao Cão Selvagem, e, por fim, o Cavalo Selvagem bateu com a pata e disse:
- Eu vou ver e dizer por que é que o Cão Selvagem não regressou. Gato, vem comigo.
- Nenni! – disse o Gato – Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares para mim são o mesmo. Não irei.
Mas mesmo assim, seguiu o Cavalo Selvagem, leve, muito levemente, e escondeu-se onde podia ouvir tudo.
Quando a Mulher ouviu o Cavalo Selvagem a pisar e a tropeçar na sua longa crina, riu e disse:
- Aqui vem o segundo. Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, o que queres?
O Cavalo Selvagem disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, onde está o Cão Selvagem?
A Mulher riu, pegou na pá de carneiro e olhou para ele e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, não vieste aqui saber do Cão Selvagem, mas por causa desta boa erva.
E o Cavalo Selvagem, pisando e tropeçando na sua longa crina, disse:
- Isso é verdade; dá-ma para comer.
A Mulher disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, verga a tua cabeça selvagem e usa o que te dou eu e comerás da erva maravilhosa três vezes por dia.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto -, esta é uma mulher esperta, mas não é tão esperta quanto eu.
O Cavalo Selvagem vergou a sua cabeça selvagem e a mulher passou-lhe o cabresto de couro entrançado e o Cavalo Selvagem fungou na direcção dos pés da Mulher e disse:
- Ó minha Ama e Esposa do meu Amo, serei teu servo por causa da erva maravilhosa.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto -, aquele é um cavalo muito tonto.
E regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão. Mas nunca contou a ninguém.
Quando o Homem e o Cão regressaram da caça, o Homem disse:
- O que está o Cavalo Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- Já não se chama Cavalo Selvagem, mas sim o Primeiro Servo, porque nos transportará de lugar para lugar para todo o sempre. Monta nele quando fores caçar.
No dia seguinte, com a sua cabeça selvagem erguida, para os cornos selvagens não se engancharem nas árvores selvagens, a Vaca Selvagem foi até á Caverna e o gato seguiu-a e escondeu-se tal e qual como antes e tudo aconteceu tal e qual como antes; e o Gato disse as mesmas coisas que dissera antes; e depois de a Vaca Selvagem ter prometido dar o seu leite á Mulher todos os dias em troca da maravilhosa erva, o Gato regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e na companhia da sua selvagem solidão, tal e qual como antes. Mas nunca contou a ninguém. E quando o Homem e o cavalo e o Cão regressaram da caça e perguntaram as mesmas perguntas tal e qual como antes, a Mulher disse:
- Ela já não se chama Vaca Selvagem mas sim Fornecedora de Bom Alimento. Dar-nos-á leite quente e branco para todo o sempre e eu tomarei conta dela enquanto tu e o Primeiro Amigo e o Primeiro Servo vão á caça.
No dia seguinte o Gato esperou para ver se mais alguma coisa selvagem iria até á Caverna, mas ninguém se mexeu nos Bosques Húmidos e Selvagens, por isso o Gato foi até lá sozinho; e viu a Mulher mungir a Vaca e viu o clarão do lume na Caverna e cheirou o cheiro do leite quente e branco.
O Gato Disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, para onde foi a Vaca Selvagem?
A Mulher riu e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, volta para os Bosques outra vez, porque eu entrancei o meu cabelo e arrumei a pá de carneiro mágica e já não temos necessidade de mais amigos ou servos na nossa Caverna.
O Gato disse:
- Eu não sou um amigo e não sou um servo. Sou o Gato que anda sozinho e desejo entrar na tua Caverna.
A Mulher disse:
- Então porque não vieste com o Primeiro Amigo na primeira noite?
O Gato ficou muito zangado e disse:
- O Cão Selvagem andou a falar de mim?
Então a Mulher riu e disse:
- Tu és o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para ti. Nem és amigo nem servo. Tu próprio o disseste. Vai-te embora e anda sozinho em todos os lugares iguais.
Então o Gato fingiu-se arrependido e disse:
- Não posso entrar nunca na tua Caverna? Não posso nunca sentar-me ao lume quente? Não posso nunca beber o leite quente e branco? Tu és muito sensata e muito bela. Não devias ser cruel nem mesmo para um Gato.
A Mulher disse:
- Eu sabia que era sensata mas não sabia que era bela. Por isso, farei um acordo contigo. Se alguma vez eu disser uma palavra em teu louvor, poderás entrar na Caverna.
- E se disseres duas palavras em meu louvor? – disse o Gato.
- Nunca o farei – disse a Mulher – mas, se disser duas palavras em teu louvor, poderás sentar-te ao lume na Caverna.
- E se disseres três palavras? – disse o Gato.
- Nunca o farei – disse a Mulher -, mas, se disser três palavras em teu louvor poderás beber o leite quente e branco três vezes por dia para todo o sempre.
Então o gato arqueou o dorso e disse:
- Agora que a Cortina na abertura da Caverna e o Lume na parte de trás da Caverna e os Potes de leite que estão ao lado do Lume lembrem o que a minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo disse.
E foi-se embora pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão.
Nessa noite, quando o Homem e o cavalo e o Cão regressaram da caça, a Mulher não lhes contou o acordo que tinha feito com o Gato, porque receava que não lhes agradasse.
O Gato foi para muito, muito longe e escondeu-se nos Bosques Húmidos e Selvagens na sua selvagem solidão durante muito tempo, até a Mulher o esquecer de todo. Só o Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar – que estava dependurado no interior da Caverna, sabia onde o Gato se escondia e todas as noites voava até ao Gato com notícias do que estava a acontecer.
Uma noite, o Morcego disse:
- Há um Bebé na Caverna. É novo e cor-de-rosa e gordo e pequeno e a Mulher gosta muito dele.
- Ah – disse o Gato ao ouvir isto - , mas do que é que gosta o Bebé?
- Gosta de coisas que sejam macias e façam cócegas – disse o Morcego – Gosta de coisas quentes para abraçar quando vai dormir. Gosta que brinquem com ele. Gosta de todas estas coisas.
- Ah – disse o Gato ao ouvir isto -, então chegou a minha vez.
Na noite seguinte o Gato atravessou os Bosques Húmidos e Selvagens e escondeu-se muito perto da Caverna até de manhã, e o Homem e o Cavalo foram á caça.
A Mulher estava atarefada a cozinhar nessa manhã e o Bebé chorava e interrompia-a. Por isso ela levou-o para fora da Caverna e deu-lhe um punhado de seixos para brincar. Mas mesmo assim, o Bebé continuava a chorar. Então o Gato esticou a sua pata fofa e fez uma festa na face do Bebé e ele arrulhou; e o Gato roçou-se contra os seus joelhos rechonchudos e fez-lhe cócegas debaixo do queixo rechonchudo com a sua cauda. E o Bebé riu; e a Mulher ouviu-o e sorriu.
Então o Morcego – o pequeno Morcego de pernas para o ar – que estava dependurado na abertura da Caverna, disse:
- Ó minha Anfitriã e Esposa do meu Anfitrião, uma Coisa Selvagem dos Bosques Selvagens está a brincar lindamente com o teu Bebé.
- Louvada seja essa Coisa Selvagem, quem quer que seja – disse a Mulher, endireitando as costas – porque eu estava muito atarefada esta manhã e ele prestou-me um serviço.
Nesse preciso minuto e segundo, Mais-que-Tudo, a Cortina de pele de cavalo curtida, que estava pendurada com a cauda para baixo na abertura da Caverna, tombou – uche! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feto com o Gato; e quando a Mulher ia para a levantar do chão, eis que o gato estava sentado todo refastelado no interior da Caverna.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque tu disseste uma palavra em meu louvor e agora eu posso sentar-me dentro da caverna para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que nada sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
A Mulher ficou muito zangada e comprimiu os lábios e pegou numa roca e começou a fiar.
Mas o Bebé chorou, porque o Gato se tinha ido embora, e a Mulher não conseguiu sossegá-lo, porque ele debatia-se e pontapeava e ficou com a cara toda roxa.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – pega num fio da linha que estás a fiar e ata-o á tua roca e arrasta-o pelo chão e eu mostrar-te-ei uma Magia que fará o teu Bebé rir tão alto como chora agora.
- Fá-lo-ei – disse a Mulher – porque não sei para onde me virar, mas não te agradecerei.
Atou o fio ao pequeno contrapeso de barro da roca e arrastou-o pelo chão e o gato correu atrás dele e deu-lhe com as patas e deu cambalhotas e atirou-o para trás por cima do ombro e andou atrás dele entre as suas pernas traseiras e fez de conta que o tinha perdido e atirou-se em cima dele outra vez até que o Bebé se riu tão alto como chorara e gatinhou atrás do Gato e andou em folguedos pela Caverna inteira até ficar cansado e se deitar para dormir com o gato nos braços.
- Agora – disse o gato – vou cantar uma canção ao Bebé que o manterá adormecido durante uma hora.
E começou a ronronar, alto e baixo, alto e baixo, até o bebé cair num sono profundo. A mulher sorriu ao olhar para os dois e disse:
- Isso foi maravilhosamente feito. Não há dúvida que és muito esperto, ó Gato.
Nesse preciso minuto e segundo, Mais-que-Tudo, o fumo do lume na parte de trás da Caverna desceu em nuvens do telhado – puff! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feito com o Gato; e quando se dissipou, eis que o Gato estava sentado todo refastelado perto do Lume.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque tu disseste uma segunda palavra em meu louvor e agora posso sentar-me ao pé do lume quente para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
Então a Mulher ficou muito muito zangada e soltou o cabelo e pôs mais lenha no lume e pegou na pá de carneiro e começou a fazer uma magia que se destinava a impedi-la de dizer uma terceira palavra em louvor ao Gato. Não era uma Magia Cantada, era uma Magia Silenciosa; e pouco depois a Caverna ficou tão silenciosa que um pequenino ratinho se esgueirou de um canto e atravessou o chão a correr.
Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – aquele ratinho faz parte da tua Magia?
- Ui! Chi! De maneira nenhuma! -disse a Mulher e deixou cair a pá de carneiro e saltou para cima do banco que estava em frente do lume e entrançou o cabelo muito depressa, com receio que o rato lhe corresse por ele acima.
- Ah – disse o Gato, olhando – então o rato não me fará mal, se eu o comer?
- Não – disse a Mulher, entrançando o cabelo – come-o depressa e ficar-te-ei eternamente grata.
Gato deu um salto e apanhou o ratinho e a Mulher disse:
- Muito agradecida. Nem mesmo o Primeiro Amigo é suficientemente rápido para apanhar ratinhos como tu. Deves ser muito esperto.
Nesse preciso momento e segundo, ó Mais-que-Tudo, o Pote de Leite que estava ao lado do lume rachou-se em dois – ffft! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feito com o Gato; e quando a Mulher saltou do banco estava o Gato a lamber o leite branco e quente que ficara num dos pedaços partidos.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo e Mãe do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque disseste uma terceira palavra em meu louvor e agora eu posso beber o leite quente e branco três vezes por dia para todo o sempre. Mas, mesmo assim, continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
Então a Mulher riu-se e pôs ao Gato uma tigela de leite quente e branco e disse:
- Ó Gato, és tão esperto como um homem, mas lembra-te que o teu acordo não foi feito com o Homem ou com o Cão, e eu não sei o que eles farão quando chegarem a casa.
- E isso que me interessa? – disse o Gato – Se eu tiver o meu lugar na Caverna ao pé do Lume e o meu leite branco e quente três vezes ao dia não me importa o que o Homem ou o cão possam fazer.
Nessa noite, quando o Homem e o Cão entraram na Caverna, a Mulher contou toda a história do acordo enquanto o Gato se deixou ficar sentado ao pé do lume a sorrir. Então o Homem disse:
- Sim, mas comigo é que ele não fez um acordo, nem comigo nem com todos os homens a sério que se me seguirão.
Depois tirou as duas botas de couro e pegou na machadinha de pedra (o que faz três) e foi buscar um pedaço de madeira e um machado (faz cinco ao todo) e pô-los em fila e disse:
- Agora faremos um acordo muito nosso. Se não apanhares ratos quando estiveres na Caverna para todo o sempre, atirar-te-ei com estas cinco coisas sempre que te veja, e assim farão todos os homens a sério que se me seguirão.
- Ah – disse a Mulher, ao ouvir isto – este é um Gato muito esperto, mas não é tão esperto como o meu Homem.
O Gato contou as cinco coisas (e pareciam muito bicudas) e disse:
- Apanherei ratos quando estiver na Caverna para todo o sempre; mas mesmo assim, continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
- Não quando eu estiver por perto – disse o Homem. – Se não tivesses dito esta última frase, eu teria posto estas coisas de lado para todo o sempre, mas agora vou atirar as minhas duas botas e a minha machadinha de pedra (faz três) a ti sempre que te encontrar. E assim farão todos os homens a sério que me seguirão!
Então o Cão disse:
- Espera um minuto. Comigo é que ele não fez um acordo, nem comigo nem com todos os cães a sério que se me seguirão.
E mostrou os dentes e disse:
- Se não fores amigo do bebé enquanto estiveres na Caverna, para todo o sempre, perseguir-te-ei até te apanhar, e quando te apanhar, morder-te-ei. E assim farão todos os cães a sério que se me seguirão!
- Ah – disse a Mulher, ao ouvir isto – este é uma Gato muito esperto, mas não é tão esperto como o Cão.
O Gato contou os dentes do Cão (e pareciam muito afiados) e disse:
- Serei amigo do Bebé, desde que ele não me puxe a cauda com demasiada força, para todo o sempre. Mas, mesmo assim, continuo a ser o gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim!
- Não quando eu estiver por perto – disse o Cão. – Se não tivesses dito essa última frase eu teria fechado a boca para todo o sempre; mas sendo assim vou dar-te caça até trepares para cima de uma árvore sempre que te encontrar - E assim farão todos os cães a sério que se me seguirão!
Depois o Homem atirou as suas duas botas e a sua machadinha de pedra (faz três) ao gato, e o Gato fugiu a correr da Caverna e o Cão perseguiu-o até ele trepar por uma árvore; e de então para cá, Mais-que-Tudo, três em cada cinco Homens a sério atiram coisas a um Gato sempre que o encontram, e todos os Cães a sério o perseguirão até ele trepar por uma árvore. Mas o Gato também respeita a sua parte do acordo. Mata ratos e é amigo dos Bebés quando está dentro de casa, desde que eles não lhe puxem a cauda com muita força. Mas depois de fazer isso, e entre uma coisa e outra, e quando a Lua se levanta e vem a noite, ele é o gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para ele. Então vai para os Bosques Húmidos e Selvagens ou sobe ás arvores húmidas e Selvagens ou aos Telhados Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão.


Rudyard Kipling.

sábado, junho 15

O PATO, A MORTE E A TULIPA



Hoje, levei Giovana para assisitr "O pato, a morte e a tulipa", peça infantil,  baseada no livro com mesmo título do escritor e ilustrador alemão Wolf Erlbruch.
A peça foi encenada no teatro do SESI (Sorocaba), e tem última apresentação amanhã, ás 16h.
Produzida pela Cia. De Feitos, a história fala da aceitação da morte, de forma delicada, contanto a história de amizade entre um pato e a morte. Uma fala em especial, eu guardei; "quem fala da morte, ensina sobre a vida", o bastante pra começar a procurar este livro pra comprar. Abraço a todos, um bom inverno.




BOLÉRO DE RAVEL



terça-feira, junho 11

FUP


Vovô Jake, Miúdo e Fup ...
e o velho sussurro da morte.



MELANIE KLEIN




"Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso"


domingo, junho 9

"TUDO BEM, PELOS SÉCULOS AMÉM, AMÉM..."



MATSUÓ BASHÔ: A LÁGRIMA DO PEIXE



De pé sobre o caminho que talvez ia nos separar para sempre nesta vida que é como um sonho, chorei lágrimas de despedida:

primavera
não nos deixe
pássaros choram
lágrimas
no olho do peixe

(Tradução: Paulo Leminski, in Bashô, a lágrima do peixe, ed. Brasiliense, 1983).




sexta-feira, junho 7

VELUDO AZUL



[...] do molhado veludo que alcança a imaginação.

Diretor: David Lynch
Cantora: Isabella Rossellini

sábado, junho 1

MY ONE AND ONLY LOVE




The very thought of you makes My heart sing,
Like an April breeze
On the wings of spring
And you come to me all your splendor,
My one and only love

The shadow's fall and spread their 
Mystique charms in the hush of night,
While you're in my arms.
I feel your lips, so warm and tender,
My one and only love

The touch of your hand is like heaven.
A heaven that I've never known
The blush on your cheek,
Whenever I speak,
Tells me that you are my own
You fill my eager heart with
Such desire,
Every kiss you give
Sets my soul on fire
I give myself in sweet surrender,
My one and only love

A DELINQUÊNCIA ACADÊMICA


O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.
A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber "objetivo", acima das contradições sociais.
No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de "homem" que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de "um complô de belas almas" recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for. Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras "restaurações". Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o "campus" universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como "herdeiros" potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.
A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de "cão de guarda" do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola "escolhia" pedagogicamente os "escolhidos" socialmente.
A transformação do professor de "cão de guarda" em "cão pastor" acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de "colarinhos brancos" rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.
A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos "cursos críticos", em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de "contaminação". O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados "cursos críticos", que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do "saber institucionalizado", do "saber burocratizado" como único "legítimo". A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.
A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames - "esse batismo burocrático do saber". O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de "exclusão" que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela "exclui" o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível - esse de posse da chamada "informação" que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?
A "delinqüência acadêmica" aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: "Ouse conhecer." Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de "intelectuais" e não de "acadêmicos". Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma "universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder". Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes "corporações", a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma "alma". [1]
Em nome do "atendimento à comunidade", "serviço público", a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma "multiversidade", isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa "agência de poder", especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.
A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da "segurança nacional" codificada no Pentágono.
O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de "delinqüência acadêmica" ou da "traição do intelectual". Em nome do "serviço à comunidade", a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a "razão do Estado" em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção - é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.
Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da "segurança nacional", o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de "panelas" acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de "mercado humano", onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revêem-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.
Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.
Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do "verdadeiro" conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O "serviço público" prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de "emancipação" ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste "record" de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial.
O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre "fazer" e "pensar" se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica - a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.
Ao analisar a "crise de consciência" dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da "escalada" no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.
Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.
A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cedem lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde "administrar" aparece como sinônimo de vigiar e punir - o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em "Cemitério de Vivos".
A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.
A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados "clichês", repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.
A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

Maurício Tragtenberg.



____________ * Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1) [1] Kaysen pretende atribuir uma "alma"à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual. [2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948.

Revista Mensal - Ano II - Número 14 - Julho de 2002 - ISSN: 1519.6186